Que farei com este livro?

Saramago, nesta peça, apresenta uma versão pouco conhecida de Luis de Camões. Nos mostra o momento no qual regressa das Índias com Os Lusíadas escrito e a dificuldade pelas quais passa para poder publicá-lo.

A peça envolve pela trama na qual acompanhamos Camões, pelo interesse em conhecer um momento histórico tão significativo na história do Brasil e de Portugal e pela relação que podemos estabelecer com a atualidade.

Possivelmente cause estranheza pensar nas possíveis relações com a atualidade, porém observamos as diferentes dificuldades que os artistas, sejam eles dramaturgos, atores, músicos, artistas visuais ou qualquer outro que viva de sua produção artística.

A pergunta que Camões se faz no final da peça e que dá nome a mesma: Que farei com este livro? é frequente para muitos no momento que concluem sua obra! Para nós, leitores, façamos o melhor que podemos: ler!

Leia o primeiro quadro desta peça!

PRIMEIRO QUADRO

Corte em Almeirim, Abril de 1570.

Padre Luís Gonçalves da Câmara, jesuíta e confessor do rei; Martim Gonçalves da Câmara, secretário de Estado, irmão de Luís Gonçalves da Câmara.

LUÍS DA CÂMARA: Más lembranças havereis deixado lá por Coimbra, irmão, de tempo em que fostes reitor da Universidade, para desta maneira vos caluniarem, e a mim de caminho. Algum inimigo será, ou invejoso da vossa fortuna, que é o mesmo que inimigo. Muita razão tinham os antigos quando diziam ser a inveja a mais direita estrada da inimizade.

MARTIM DA CÂMARA: De cães que ladrem e línguas que maldigam, ninguém se livra, muito menos se for confessor de el-rei, como vós, ou secretário de Estado, como eu. Esse é o tributo que os poderosos sempre tiveram de pagar. Deixai correr, se a intriga não for a mais.

LUÍS DA CÂMARA: Confiado vos vejo.

MARTIM DA CÂMARA: Perdoai outra vez. Bem sabeis como vos respeito e amo. Não vos devo menos que a nosso pai. Dele recebi a vida, de vós a fortuna, este meu cargo no Paço, a autoridade que tenho no reino. É a vossa grande bondade que às vezes me permite esquecer a diferença que fazem as nossas idades, e quanto maior é a vossa sabedoria que a minha ignorância. Mas a veneração que vos devo e por vós tenho, essa não a esqueço nunca.

LUÍS DA CÂMARA: Não quis censurar-vos, Martim. E como haveis falado das idades que temos, e da diferença que elas fazem, digo-vos que isso mesmo me preocupa. Estou velho, não espero viver muito mais, mas desejaria, quando fosse Deus servido chamar-me à sua presença, deixar-vos firme neste governo.

MARTIM DA CÂMARA: Tenho a confiança de el-rei.

LUÍS DA CÂMARA: Tendes. E muitos ódios na corte. Desenganai-vos, irmão, se enganado andais. No dia em que eu morrer, ou se antes disso Sua Alteza me preferir outro confessor, a vossa posição estará em grande perigo. Sabeis como a rainha nos tem em pouca estima. Já vos esquecestes dos trabalhos que tivemos para evitar que fosse colocado junto de el-rei, por seu confessor, um padre doutra ordem, um dominicano ou um agostinho? Se não contássemos, do nosso lado, com a influência do cardeal-infante, a Companhia de Jesus teria sido posta de parte, e perderia, neste caso, um dos seus triunfos maiores: ser confessora e conselheira de el-rei. (Pausa.) E se eu não fosse o confessor, não seríeis vós o secretário de Estado.

MARTIM DA CÂMARA: Isso que dizeis faz-me pensar se afinal não terá sido mais alta a mão que escreveu ou mandou escrever o pasquim que em Coimbra se publicou. Também a avó de el-rei nosso senhor nos acusa, a mim, a vós e à Companhia, de desviarmos Sua Alteza do casamento. E Deus sabe que tal não é verdade.

LUÍS DA CÂMARA: Será meia verdade. El-rei não quer casar, à Companhia não convém que el-rei case tão cedo. Casando el-rei, quem sabe se continuaria a ouvir-nos, ainda que tão pouco?

MARTIM DA CÂMARA: Terá então sido D. Catarina?

LUÍS DA CÂMARA: Não vou tão longe, irmão. A avó de el-rei nunca escondeu o seu pensamento, não precisaria de que mãos assalariadas o exprimissem em imundos papéis.

MARTIM DA CÂMARA: Poderia querer virar o povo contra nós.

LUÍS DA CÂMARA: Talvez. Estaremos precavidos. Ainda que tanto erra aquele que de todos se fia como aquele que de tudo se receia.

MARTIM DA CÂMARA: El-rei haverá de casar um dia.

LUÍS DA CÂMARA: Assim será, para felicidade do reino. Mas cada coisa tem seu tempo.

MARTIM DA CÂMARA: Outros reis casaram bem mais cedo.

LUÍS DA CÂMARA: El-rei casará, torno a dizer, não nos dê isso cuidado.

MARTIM DA CÂMARA: Estais preocupado, padre Luís Gonçalves da Câmara.

LUÍS DA CÂMARA: Não são mais os meus cuidados do que os vossos, Martim.

MARTIM DA CÂMARA: Então são muitos. Sabeis, como eu, que o mal não está em não haver el-rei casado até agora. Sua Alteza que idade. tem? Dezasseis anos. Um dia destes acorda de manhã e diz: quero escolher noiva. E Portugal terá a sua rainha.

LUÍS DA CÂMARA: Quisesse Deus que fosse tudo tão fácil como dizeis.

MARTIM DA CÂMARA: Vejo que vos aproximais de mim. E como não ousareis dar os passos que faltam, dir-vos-ei eu que não é casar ou não casar el-rei que vos preocupa.

LUÍS DA CÂMARA: Que é, então?

MARTIM DA CÂMARA: Terei de ser eu a declarar as palavras que a vossa língua recusa, padre Luís Gonçalves da Câmara? Rainha de Portugal, haveremos talvez, não creio é que dê ela filhos que de el-rei possam ser. (Pausa.) Perdoai se vos escandalizei.

LUÍS DA CÂMARA: Um confessor nunca se escandaliza. Sabeis o que haveis dito?

MARTIM DA CÂMARA: E vós, meu irmão, parece-vos bem que estejamos a jogar o jogo das escondidas?

LUÍS DA CÂMARA: Não vos entendo.

MARTIM DA CÂMARA: Entendeis, entendeis. Mesmo sendo eu secretário de Estado, e como vós pertencente à Companhia de Jesus, não invoco as razões e o interesse do reino para descobrir segredos de confissão. Somente vos quero perguntar se tendes a certeza de que do ajuntamento de el-rei com uma mulher, sua legítima ou barregã, poderão vir a nascer filhos. E também vos pergunto se estais seguro de que tal ajuntamento se possa carnalmente fazer.

LUÍS DA CÂMARA: Da vossa parte, é muito perguntar, senhor secretário de Estado.

MARTIM DA CÂMARA: E da vossa, pouco responder, senhor confessor de el-rei.

LUÍS DA CÂMARA: Que quereis que vos diga? São perguntas que eu próprio tenho feito em meu pensamento.

MARTIM DA CÂMARA: E que respostas vos dá ele?

LUÍS DA CÂMARA: Tenho tentado não as ouvir.

MARTIM DA CÂMARA: Isso me basta.

LUÍS DA CÂMARA: Deus fará o milagre para salvar-se o reino.

MARTIM DA CÂMARA: Grande, sem dúvida, é o poder de Deus, mas para que o homem pudesse empunhar a espada, foi preciso que o mesmo Deus lhe desse mãos. Ora, as mãos é com o homem que nascem, não lhe vêm depois. Esse milagre não o pode Deus fazer.

LUÍS DA CÂMARA: Tende tento na vossa língua, Martim Gonçalves. A Deus nada é impossível.

MARTIM DA CÂMARA: Excepto emendar a sua própria obra.

LUÍS DA CÂMARA: Calai-vos.

MARTIM DA CÂMARA: Sim, meu irmão.

LUÍS DA CÂMARA: Tivesse aqui ouvidos o Santo Ofício e nem eu vos poderia livrar de processo. (Pausa.) Que notícias vêm de Lisboa?

MARTIM DA CÂMARA: Nem melhores, nem piores. A peste não dá sinais de querer retirar-se, e agora, com estes primeiros calores de Abril, temo que redobre. Já morreram mais de cinquenta mil pessoas, geralmente do povo miúdo.

LUÍS DA CÂMARA: Nosso Senhor receba as suas almas e nos defenda a nós da contagião.

MARTIM DA CÂMARA: Amen. Aqui, em Almeirim, os ares são frescos e lavados, não chegará cá a pestilença. Lisboa está fechada, é como um caldeirão de brasas. Em não tendo mais que consumir, apagam-se a si próprias.

LUÍS DA CÂMARA: Ficam as cinzas.

MARTIM DA CÂMARA: Ficam as cinzas. (Pausa.) Sua Alteza sai amanhã a montear.

LUÍS DA CÂMARA: Gentil caçador é el-rei, e ardoroso. Em todo o reino não tem quem se lhe compare.

MARTIM DA CÂMARA: Hoje, a manhã esteve de névoa. É de manhãs assim que el-rei mais gosta. É o seu maior prazer, cavalgar às cegas.

LUÍS DA CÂMARA: Sim, manhãs de nevoeiro.

Lelê Ancona

Professora de teatro desde 1986, tenho trabalhado em todos os níveis de ensino nos últimos 15 anos, principalmente com formação de professores. Minha graduação foi em Artes Visuais, na Faculdade Santa Marcelina, em SP, mas como já fazia teatro, fiz a Especialização em Teatro e Dança na ECA/USP, onde entrei em contato com os Jogos Teatrais da Viola Spolin, que foram marcantes para minhas escolhas como docente.

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