Moinho sem vento

A motivação de postar esta peça veio dos dois posts anteriores, nos quais falo sobre o silêncio na cena.

Esta peça foi escrita por mim em 1998, quando eu morava em Barcelona e pesquisava as possíveis relações do uso da proposta de Rudolf Laban no preparo do ator para a cena.

Rudolf Laban foi um teórico da dança e do movimento, e em suas pesquisas definiu quatro fatores de movimento: tempo, espaço, fluência e peso/força. A combinação destes fatores geram diferentes qualidades de movimento, chamadas por ele de dinâmicas de movimento. São oito as dinâmicas possíveis: bater, cortar, pulsar, sacudir, pressionar, torcer, deslizar e flutuar.

A explicação sobre este estudo seria longa, mas os nomes das ações são autoexplicativos, sendo possível compreender qual o movimento utilizado.

Realizo esta pequena introdução sobre o estudo de Laban pois nesta peça fiz uso desta nomenclatura para definir as diferentes qualidades de movimento.

Nesta leitura é possível perceber um texto teatral que propõe a cena e a movimentação dos atores sem que haja nenhuma fala. Espero que você faça esta leitura e consiga imaginar a cena, pensando em diferentes soluções teatrais para uma possível montagem deste texto dramatúrgico.

Foto disponível em https://pixabay.com/pt

 

 MOINHO SEM VENTO

Obra gestual em um ato

Personagens:

Carlos

Luiza

Coro de oito mulheres

 

A peça se passa em 1998, Carlos tem 33 anos e Luiza, 35.

 Um quarto que contém uma cama de casal, uma cadeira e uma mesa. A cama é colocada no fundo do palco, mas deixando espaço para que os atores se movimentem por trás. A mesa é colocada na parede esquerda, em frente, e a cadeira na parede direita. A porta da quarto fica ao lado da cadeira. Um coro de mulheres de costas, todas estão penduradas no teto por suas barrigas de mulheres grávidas.

 CARLOS: Com um papel em sua mão direita, anda da cadeira para a mesa, com passo direto, rápido e forte. A cada cinco passos, para, dobra o papel que tem nas mãos quase rasgando, olha na direção da porta e retorna a andar.

CORO: (de costas) Não queira protegê-la, Carlos, não tente.

LUIZA: Aparece de pé na porta, que está ao lado da cadeira.

Todo o CORO gira de tal maneira que se vê a barriga de todas as mulheres.

CORO: Passa a mão direita sobre a barriga, desenhando a redondeza de sua gravidez com movimentos de flutuar e se abraça, olhando sua barriga, com um movimento de pulsar, tornando a flutuar, duas vezes seguidas. Para de movimentar e mantém as mãos na barriga, olhando para Luiza.

LUIZA: Entra no quarto, para depois de dar dois passos, passa a mão em sua barriga com o mesmo movimento do coro e estende as mãos na direção de Carlos.

CARLOS: Dá um giro, ficando de costas para Luiza, apoia as duas mãos na mesa e vai lentamente apoiando os cotovelos, o peito, até se ajoelhar. Repete este mesmo movimento cada vez com mais velocidade.

LUIZA: (enquanto Carlos se ajoelha) Corre por todo o quarto, saltando a cadeira e por cima da cama, com movimentos rápidos e leves. Suas duas mãos sobem pela barriga, giram (como um moinho) desde o mais próximo de seu corpo até o mais distante, para depois se abrir e voltar para a barriga.

LUIZA: Para diante de Carlos, gira-o para si, pega suas mãos e as coloca sobre sua barriga.

CARLOS: Tira as mãos, com movimento forte e rápido.

LUIZA: Afasta seu corpo o máximo possível de Carlos, sem dar nenhum passo e para congelada com as mãos sobre a barriga.

CARLOS: Passa as mãos sobre a barriga de Luiza, com movimentos de pressionar, de cima para baixo.

CORO: Faz movimentos de proteção ao seu corpo, intercalados com movimentos de afastar qualquer pessoa que se aproxime, olhando para o lado, com medo.

LUIZA: Dá quatro passos para trás e abraça com força a própria barriga.

CARLOS: Caminha lentamente em direção à Luiza e passa novamente as mãos sobre sua barriga.

LUIZA: Dá dois passos para trás, abraçando sua barriga, com menos força.

CARLOS: Caminha lentamente em direção à Luiza e passa novamente as mãos sobre sua barriga, com mais força.

LUIZA: Dá um passo para trás e abraça sua barriga sem força alguma.

CARLOS: Caminha lentamente em direção à Luiza e passa novamente as mãos sobre sua barriga, com mais força.

LUIZA: Deixa de caminhar, continua abraçada a sua barriga.

CARLOS: Repete incessantemente, cada vez com mais força, o movimento de passar as mãos “limpando” sua barriga.

LUIZA: Vai lentamente, mudando o abraço na barriga para os seios, até chegar na cabeça, em um abraço que cobre seus olhos.

CORO: Congela o movimento com os braços deixados ao lado do corpo e as pernas soltas. O rosto e todo o corpo não demonstram nenhuma força muscular, somente a suficiente para manter-se ereta.

CARLOS: Pega Luiza pelas mãos, levando-a em direção à porta.

LUIZA: Senta-se na cadeira com movimento direto, pesado e lento.

CARLOS: Retira Luiza da cadeira, empurrando-a pelas costas com movimentos diretos e delicados.

LUIZA: Caminha pesadamente em direção à cama, onde se deita, deixando-se cair (saco).

CARLOS: Tira Luiza da cama, puxando-a pelos braços e a empurra pelo quarto, mantendo uma mão em sua cabeça e a outra no final da coluna.

LUIZA: Se deixa conduzir mantendo as duas mãos tapando a própria boca.

LUIZA e CARLOS: Caminham lentamente pela quarto, cruzando-o inteiro, até sair pela porta. Enquanto caminham, Carlos vai se colocando ao lado de Luiza, a abraça com o braço que estava em suas costas e tapa sua boca com a outra mão, Luiza permanece com as duas mãos na boca.

Saem do quarto.

CORO: Baixa em direção ao chão, com a barriga desfeita. Mantém-se preso ao teto pela barriga, mas não é mais uma barriga de grávida. Em toda a decida mantém o corpo em estado de absoluta tensão e no rosto expressão de medo. Ao tocar os pés no chão, a expressão do rosto se altera para de tristeza e o corpo perde a tensão.

LUIZA e CARLOS: Entram no quarto.

LUIZA: Olha para Carlos e corre para a esquina do quarto mais distante, onde se coloca de costas, com os braços estendidos para trás.

CARLOS: Caminha em direção à Luiza e toca suas mãos.

LUIZA: Gira, olha Carlos e faz o mesmo que antes.

CARLOS: Repete a ação anterior.

LUIZA e CARLOS: Repetem cada vez com mais velocidade esta mesma ação, até que ambos caem no chão.

LUIZA: Levanta-se, pega um dos travesseiros da cama e sai do quarto.

CORO: Solta-se do tecido “barriga” que lhe prende ao teto e sai do quarto caminhando.

CARLOS: Levanta-se do chão com pequenos movimentos de sacudir, que transformam seu caminhar em um avançar cada vez mais desfeito, até chegar ao primeiro tecido pendurado, puxando-o.

CARLOS: Avança para o próximo tecido com movimentos de torcer que vai se intensificando na força e ampliando por todo seu corpo, até puxar o último tecido. Conforme puxa os tecidos, lentamente vai se atando com eles. Começa pelos braços, seguido das pernas e da cabeça. Depois de puxar o último tecido, se coloca em posição fetal.

Lelê Ancona

Professora de teatro desde 1986, tenho trabalhado em todos os níveis de ensino nos últimos 15 anos, principalmente com formação de professores. Minha graduação foi em Artes Visuais, na Faculdade Santa Marcelina, em SP, mas como já fazia teatro, fiz a Especialização em Teatro e Dança na ECA/USP, onde entrei em contato com os Jogos Teatrais da Viola Spolin, que foram marcantes para minhas escolhas como docente.

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