Seis personagens à procura de um autor

Algumas peças merecem ser lidas apenas pelo que representam na literatura teatral, essa é uma delas. Se este motivo não lhe convence, você pode fazer a leitura desta obra de Luigi Pirandello por saber que este autor escreveu, em 1921, uma peça que abordou questões sobre o sentido de encenar e sobre a relação entre realidade e representação que permanecem relevantes até hoje.

Mas se nada disso lhe convence, afinal o seu interesse por teatro não é tanto assim, leia porque é um texto delicioso!

Em meio a um ensaio chegam seis personagens que começam a contar sobre suas vidas, sobre o drama vivido por eles, as implicações das escolhas que levaram uma família — mais estranha na época do que hoje, mas nem por isso menos angustiante — a viver uma situação bastante difícil.

Nos envolvemos com a narrativa assim como o diretor da peça, porém, é justamente no momento que ela começa a ser encenada que vemos a principal discussão proposta pelo autor, isto é, a questão sobre a veracidade da cena evocada a partir dos conflitos que surgem entre personagens e atores.

Leia um pedaço da peça e se quiser ler todo o texto acesse em: http://joinville.ifsc.edu.br/~luciana.cesconetto/Textos%20teatrais/DRAMATURGIAS/PIRANDELLO-%20Seis%20personagens….pdf

Luigi Pirandello, disponível em http://www.livroscotovia.pt/autores/detalhes.php?id=45

TRECHO DA PEÇA SEIS PERSONAGENS À PROCURA DE UM AUTOR

O PAI – Mas, se todo o mal está nisto!… Nas palavras. Todos trazemos dentro de nós um mundo de coisas: cada qual tem o seu mundo de coisas! E como podemos entender-nos, senhor, se, nas palavras que digo, ponho o sentido e o valor das coisas como são dentro de mim, enquanto quem as ouve lhes dá, inevitavelmente, o sentido e o valor que elas têm para ele, no mundo que traz consigo? Pensamos entender-nos… e jamais nos entendemos! Veja: a minha compaixão, toda a minha compaixão por esta criatura (indica a Mãe.), ela considerou a mais feroz das crueldades!…

A MÃE – Mas se você me expulsou!

O PAI – Vê? Está ouvindo? Diz que a expulsei. Acha que a expulsei!

A MÃE – Você sabe falar: eu não sei… Mas, acredite senhor, que, depois de se ter casado comigo… quem sabe por quê!… – (eu era uma pobre mulher, humilde…).

O PAI – Justamente por isso! Casei-me pela sua humildade, o que eu amava em você, julgando… (Interrompe-se diante das negações dela. Abre os braços, desesperado pela impossibilidade de fazer-se compreender. Dirigindo-se ao Diretor.) Está vendo? Diz que não! É espantosa, senhor – acredite -, é espantosa a sua surdez (bate na testa.), a sua surdez mental! Coração tem, para os filhos! Mas surda: surda de cérebro, surda, senhor, até ao desespero!

A ENTEADA – É, mas pergunte-lhe agora que sorte nos trouxe a sua inteligência!…

O PAI – Se nos fosse dado prever todo o mal que pode nascer do bem que pensamos fazer!… (Nesta altura, a Primeira Atriz, aborrecida por ver o Primeiro Ato namorar a Enteada, vem ao Diretor e pergunta.).

A PRIMEIRA ATRIZ – Com licença, Senhor Diretor: o ensaio vai continuar?

O DIRETOR – Vai, sim, vai. Mas agora me deixe ouvir.

O GALÃ – É um caso tão novo!

A INGÊNUA – Interessantíssimo!

A PRIMEIRA ATRIZ (Dando uma olhadela ao Primeiro Ator) – Para quem se interessa por ele…

O DIRETOR (Ao Pai) – Mas é preciso que o senhor se explique claramente! (Senta-se.).

O PAI – Pois não! Veja senhor: eu tinha um subalterno, meu secretário, um pobre homem, devotadíssimo, que andava, em tudo e por tudo, de acordo com ela (indica a Mãe.), sem sombra de mal — note bem! — um homem bom, humilde e tão incapaz quanto ela — já não digo de fazer, mas de pensar no mal!…

A ENTEADA – E, em vista disso, ele o pensou, por eles — e o fez!

O PAI – Não é verdade! Pensei fazer o bem deles e também o meu, confesso! Meu senhor: tinha chegado ao ponto em que não podia dizer uma palavra a um ou a outro, sem que imediatamente trocassem um olhar de compreensão, sem que ela procurasse logo os olhos do outro para aconselhar-se, para saber como devia interpretar aquela minha palavra, para não irritar-me. Bastava isso — o senhor bem pode compreender — para manter-me numa raiva contínua, num estado de exasperação intolerável!…

O DIRETOR – Uma pergunta: por que não mandava embora o seu secretário?

O PAI – Foi o que fiz. Mandei-o embora. Mas vi então esta pobre mulher andar pela casa como perdida, como um animal sem dono que a gente recolhe por pena.

A MÃE – Pudera!

O PAI (Volta-se para ela, como que para lhe antecipar-se, rápido) – O Filho, não é?

A MÃE – Primeiro, tinha-me tirado o Filho do peito, senhor!

O PAI – Mas não foi por crueldade! Foi para fazê-lo crescer sadio e robusto, ao contato da terra!

A ENTEADA (Indicando o Filho, irônica) – Vê-se!…

O PAI (Rápido) – E é também culpa minha, se depois ficou assim? Entreguei-o a uma ama-de-leite, fora da cidade, a uma camponesa, porque ela não me parecia bastante forte para amamentá-lo, apesar de ser de origem humilde. Foi por esta mesma razão que me casei com ela. Sempre ouvi dizer que as pessoas de nascimento modesto são mais fortes e sadias… Crendices!… Mas que havemos de fazer? Sempre tive destas malditas aspirações a uma sólida sanidade moral!… (A Enteada, neste ponto, solta nova e radiosa gargalhada. O Pai dirige-se ao Diretor.) Faça-a calar! É insuportável!

Foto de Fredi Kleemann da montagem de 1951, disponível em http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra60179/seis-personagens-a-procura-de-um-autor

O DIRETOR – Cale-se! Deixe-me ouvir, Santo Deus!… (Com a repreensão do Diretor, a Enteada interrompe a gargalhada em meio e fica de novo absorta e longínqua. O Diretor desce à plateia para ter a impressão da cena.).

O PAI – Não pude mais ver esta mulher (indica a Mãe.) junto a mim. Não tanto pelo aborrecimento, pela opressão — verdadeira opressão — que me dava, quanto pela pena — uma pena angustiosa — que sentia por ela.

A MÃE – E mandou-me embora!

 

Lelê Ancona

Professora de teatro desde 1986, tenho trabalhado em todos os níveis de ensino nos últimos 15 anos, principalmente com formação de professores. Minha graduação foi em Artes Visuais, na Faculdade Santa Marcelina, em SP, mas como já fazia teatro, fiz a Especialização em Teatro e Dança na ECA/USP, onde entrei em contato com os Jogos Teatrais da Viola Spolin, que foram marcantes para minhas escolhas como docente.

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