O Rei da Vela

O Rei da Vela foi escrito em 1933 e encenada pela primeira vez em 1967, com montagem dirigida por José Celso Martinez Corrêa, que a remontou agora, em comemoração aos 50 anos da primeira encenação.

Escrita por Oswald de Andrade, a peça é uma crítica à sociedade e à política de um Brasil que vivia a crise do café e as consequências do crack de 1929 da Bolsa de Nova York. Nela observamos a forma pela qual o sistema de agiotagem permite o enriquecimento de alguns  em detrimento dos muitos que se tornam dependentes.

Dina Sfat em montagem de 1967. Foto de Fredi Kleemann

Estruturada em três atos, tendo como personagens centrais Abelardo I, Abelardo II e Heloísa é possível acompanhar a maneira pela qual as questões apresentadas continuam atuais. No Brasil que vivemos hoje é possível observar a crítica feita por Oswald de Andrade sobre a maneira pela qual o poder e o dinheiro se mantém nas mãos de poucos. Crítica que poderia ser feita aos mecanismos da política atual, ainda que estejamos a quase 100 anos do momento no qual foi escrita.

O questionamento sobre a moralidade e sexualidade também são aspectos significativos deste texto.

A ruptura com a ilusão teatral, evidente na fala de Abelardo I quando conversa com o ponto, ou mesmo em suas referências ao fato de ser uma peça teatral, nos apresenta a ousadia do autor nesta proposta estética.

Para que a tua vontade de ler aumente, segue um pequeno trecho, desta que é uma das mais importantes obras da dramaturgia brasileira.

Cartaz de divulgação da montagem de 2017, dirigida por José Celso Martinez Correa

O Rei da Vela – trecho do primeiro ato

Heloísa (mostrando a Gioconda) – Por que que você tem esse quadro aí…

Abelardo I – A Giocondo… Um naco de pobreza. O primeiro sorriso burguês…

Heloísa – Você é realista. E por isso enriqueceu magicamente. Enquanto os meus pais, lavradores de cem anos, empobreceram em dois…

Abelardo I – Trabalharam e fizeram trabalhar para mim milhares de seres durante noventa e oito… (Silêncio absoluto).

Heloísa – Dizem tanta coisa de você, Abelardo…
Abelardo I – Já sei… Os degraus do crime… que desci corajosamente. Sob o silêncio comprado dos jornais e a cegueira da justiça da minha classe! Os espectros do passado… Os homens que traí e assassinei. As mulheres que deixei. Os suicidados… O contrabando e a pilhagem… Todo o arsenal do teatro moralistas dos nossos avós. Nada disso me impressiona nem impressiona mais o público… A chave milagrosa da fortuna, uma chave yale… Jogo com ela!

Heloísa – O pânico…

Abelardo I – Por que não? O pânico do café. Com dinheiro inglês comprei café na porta das fazendas desesperadas. De posse de segredos governamentais, joguei duro e certo no café-papel! Amontoei ruínas de um lado e ouro do outro! Mas, há o trabalho construtivo, a indústria… Calculei ante a regressão parcial que a crise provocou… Descobri e incentivei a regressão, à volta a vela… sob o signo do capital americano.

Heloísa – Ficaste o Rei da Vela!

Abelardo I – Com muita honra! O Rei da Vela miserável dos agonizantes. O Rei da vela de sebo. E da vela feudal que nos fez adormecer em criança pensando nas histórias das negras velhas… Da vela pequeno-burguesa dos oratórios e das escritas em casa… As empresas elétricas fecharam com a crise… Ninguém mais pode pagar o preço da luz… A vela voltou ao mercado pela minha mão previdente. Veja como eu produzo de todos os tamanhos e cores. (Indica o mostruário). Para o Mês de Maria, para as cidades caipiras, para os armazéns do interior onde se vende e se joga à noite, para a hora de estudo das crianças, para os contrabandistas no mar, mas a grande vela é à vela da agonia, aquela pequena velhinha de sebo que espalhei para o Brasil inteiro… Num país medieval como nosso, quem se atreve a passar os umbrais da eternidade sem uma vela na mão? Herdo um tostão de cada morto nacional!

Heloísa (Sonhando) – Meu pai era o Coronel Belarmino que tinha sete fazendas, aquela casa suntuosa de Higienópolis… ações, automóveis… Duas filhas viciadas, dois filhos tarados… Ficou morando na nossa casinha de Penha e indo à missa pedir a Deus a solução que os governos não deram…

Abelardo I – Que não deram aos que não podem viver sem empréstimos.

Heloísa – Meus pais… meus tios… meus primos…

Abelardo I – Os velhos senhores da terra que tinham que dar lugar aos novos senhores da terra!

Heloísa – No entanto, todos dizem que acabou a época dos senhores e dos latifúndios…

Abelardo I – Você sabe que o meu caso prova o contrário. Ainda não tenho o número de fazendas que seu pai tinha, mas já possuo uma área cultivada maior que a que ele teve no apogeu.

Heloísa – Há dez anos… A saca de café a duzentos mil-réis!
Abelardo I – Estamos de fato num ponto crítico em que podem predominar, aparentemente e em número, as pequenas lavouras. Mas nunca como potência financeira. Dentro do capitalismo, a pequena propriedade seguirá o destino da ação isolada nas sociedades anônimas. O possuidor de uma é mito econômico. Senhora minha noiva, a concentração do capital é um fenômeno que eu apalpo com as minhas mãos. Sob a lei da concorrência, os fortes comerão sempre os fracos. Desse modo é que desde já os latifúndios paulistas se reconstituem sob novos proprietários.

Heloísa – Formidável trabalho o seu!

Abelardo I – Não faça ironia com a sua própria felicidade! Nós dois sabemos que milhares de trabalhadores lutam de sol a sol para nos dar farra e conforto. Com a enxada nas mãos calosas e sujas. Mas eu tenho tanta culpa disso como o papa-níqueis bem colocado que se enche diariamente de moedas. É assim a sociedade em que vivemos. O regime capitalista que Deus guarde…

Heloísa – E você não teme nada?

Abelardo I – Os ingleses e americanos temem por nós. Estamos ligados ao destino deles. Devemos tudo, o que temos e o que não temos. Hipotecamos palmeiras… quedas d’água. Cardeais!

Heloísa – Eu li num jornal que devemos só a Inglaterra trezentos milhões de libras, mas só chegaram aqui trinta milhões…

Abelardo I – É provável! Mas compromisso é compromisso! Os países inferiores têm que trabalhar para os países superiores como os pobres trabalham para os ricos. Você acredita que New York teria aquelas babéis vivas de arranha-céus e as vinte mil pernas mais bonitas da Terra se não se trabalhasse para Wall Street de Ribeirão Preto a Cingapura, de Manaus a Libéria? Eu sei que sou um simples feitor do capital estrangeiro. Um lacaio, se quiserem! Mas não me queixo. É por isso que possuo uma lancha, uma ilha e você…

(*) Do livro O Rei da Vela (1933). São Paulo, Editora Globo, 2003

Lelê Ancona

Professora de teatro desde 1986, tenho trabalhado em todos os níveis de ensino nos últimos 15 anos, principalmente com formação de professores. Minha graduação foi em Artes Visuais, na Faculdade Santa Marcelina, em SP, mas como já fazia teatro, fiz a Especialização em Teatro e Dança na ECA/USP, onde entrei em contato com os Jogos Teatrais da Viola Spolin, que foram marcantes para minhas escolhas como docente.

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